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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A CATINGA É A PIOR CRIATURA NA FACE DA TERRA


Colaboração: prof. Jeann Marcus

A constatação me veio após um mês de circulação no coletivo “Forene-Cambuci”, na parte alta da cidade de Maceió, onde, pelas manhãs, me fiz passageiro deste, juntamente com trabalhadores do comércio, da construção civil, servidores públicos e alguns poucos desocupados.

O ônibus, capitaneado por um mulato sorridente e habilidoso ao volante, apelidado por muitos de “Irmão” (por conta da audição de uma rádio evangélica, sempre num mesmo horário e com um mesmo pregador, apelidado por passageiros próximos de “sabe-tudo”) e pelo sempre irreverente (e intrometido nas conversas alheias) cobrador Ítalo; apresentava-se a mim diariamente como uma novela a se desdobrar em capítulos que, ao saltar em um ponto próximo ao trabalho, me faziam fantasiar as cenas dos próximos episódios.

Detalhe: a história principal não acontecia no próprio coletivo. Era narrada pelos próprios protagonistas, com uma riqueza de minúcias e atitudes sempre julgadas por uma maioria.

Três classes delineavam claramente, no coletivo, seus territórios por todos os dias: na frente, os que carregavam disposição para os comentários de duplo sentido do cobrador ou a insistência do pregador na rádio, quase sempre com observações de cunho fundamentalista; no centro do coletivo, uma porção de estudantes revisando conteúdos para provas na Federal e uns poucos trabalhadores sonolentos e de ressaca a cochilar e retomar forças para o trabalho; e, no fundo, “eles”, os reais narradores da história que me envolvia: cerca de uma dúzia de trabalhadores da construção civil a demonstrar todo seu ódio (e admiração) pelo “Catinga”.

O Catinga é a pior criatura na face da Terra. Embora eu nunca tenha ouvido exatamente este comentário direto, foi o que me ocorreu durante os comerciais entre um e outro capítulo de meus dias. Em uma das cenas descrita, o Catinga teria deixado um dos seus subordinados a organizar todo o material de trabalho e, ao começar a lavar a betoneira às 17 horas, este foi constrangido (na frente de todos) e duramente advertido que o horário na obra era até às dezoito, sendo inclusive penalizado pelo desconto de uma hora de trabalho. Num outro depoimento, um dos passageiros relatou o dia em que chegou às 7 e 15 e foi mandado embora, pelo Catinga, sem ter sequer restituido o valor pago no transporte. Noutro dia, toda a peãozada observou um protegido do Catinga chegar à obra às 7 e 25. E entrar para o trabalho.

Até onde o meu esquálido espírito de observação me permitiu ler o enredo, também me vi naquela história, a fazer juízos de valores, a relembrar autoridades que cruzaram os meus caminhos e a diagnosticar situações em que eu mesmo me fiz Catinga (ou foi “catingado” por alguém).

Catinga era um “imediato” que, na ausência do legítimo “mestre de obras”, assumia o posto com unhas e dentes e demonstrava o orgulho e a frieza dos fascistas. Sendo ele igual aos demais em umas poucas situações, transformava-se num outro ser, onde, por estrangulação de benefícios era odiado por muitos e, por ocupar a posição que outros tantos vislumbravam, era deveras respeitado e, quiçá, secretamente enaltecido.

A frase de Abraham Lincoln, “se quiser por à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder”, nunca foi tão apropriada como uma “moral da história” a esta novela mexicana que presenciei. E digo mais: numa das ocasiões em que o coletivo imediatamente anterior ao nosso quebrou e, num desespero angustiante tentei me dirigir à parte de trás do coletivo driblando uma outra dúzia de passageiros para não perder parte da história, tive uma ligeira impressão que, talvez, o Catinga não fosse tão mal assim.

Para Rousseau, “o homem nasce bom”. Assim, também teria sido ele, o Catinga, bom algum dia. E, com este pensamento, me vieram à mente imagens projetadas (e fantasiadas) de episódios que perdi, tendo o Catinga a mesma posição que os demais. Sendo, ele mesmo, “catingado” por outro alguém, que lhe tirava o sossego e despertava os instintos e o aumento no fluxo da bílis.

Diz o senso comum que tudo nesta vida é passageiro (menos o cobrador e o motorista). Logo, sempre existirão planos para sabotar o Catinga, quer sejam nos comentários maliciosos e nos verbetes vexaminosos e pejorativos sobre sua mulher (para atingí-lo, por tabela) ou mesmo sobre o fato de ser ele mesmo - na crítica observação de parte dos seus subordinados - vítima de sua condição, já que o Catinga só teria o poder de mando e a benesse de não pegar no pesado, mas, que não recebia nem um centavo a mais que os outros por isso, mesmo tendo que chegar primeiro e sair por último...

E, curiosamente, sempre existirão humanos a desejar “trabalhar mais e ganhar o mesmo” só para sentirem o gostinho de mandar em alguém. Assim, é provável considerar verdadeira a paráfrase que me ocorre: “O homem nasce bom, a hierarquia é que o corrompe”. Afinal, mesmo o motorista, que conduz diariamente a angustiante vida de todos, é subordinado. O cobrador tem patrão, o Catinga tem patrão e o estúpido que escreveu este texto que você agora lê também tem patrão. E para você que acredita que o trabalho incondicionalmente dignifica o homem, uma outra paráfrase cruel: "O trabalho danifica o homem".

No coletivo do cotidiano seriamos nós, humanos, todos Catingas? E até quando seremos "catingados" por alguém? Um dia, certamente, nos últimos episódios desta novela ridícula saberemos... Mas, esta história já está fedendo demais... Fico por aqui.

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